*** Final – Alexandre ***
Fizemos
o caminho para o escritório num instante. Eu esperava apanhar trânsito, como
acontecia todos os dias, esperava ter problemas, esperava ter tempo para pensar
no que diria ao meu cliente quando chegasse, ter tempo para visualizar a
reunião. Não aconteceu nada disso, passei por sítios que não sabia que
existiam, ruas que nem deviam vir no mapa e cheguei ao escritório num instante.
-
Eu conduzo em Lisboa há muitos anos, doutor, um táxi não o trazia aqui mais
depressa que eu!
Acreditei
perfeitamente, acreditei sem a mínima hesitação. Portanto sabia-me conduzir
bem, sabia cozinhar, disse-me que fazia tudo em casa… tudo… e ainda por cima
era super atraente e super sensual. O meu amigo Hugo brincava dizendo que
percebia que estava apaixonado quando achava um homem perfeito… estar
apaixonado era achar que a pessoa que desejamos não tem defeitos. Bem, então
estou mesmo apaixonado.
Felizmente
sempre tive a capacidade de compartimentar os momentos da minha vida. Não tive
sucesso a 100%, mas consegui concentrar-me o suficiente no cliente para ele não
suspeitar que o meu pensamento de vez em quando atravessava a porta do gabinete
para imaginar o que o homem que estava lá fora à minha espera estaria a fazer.
Quando
fiquei sozinho preparei rapidamente uma minuta de um contrato de trabalho. Eu,
primeiro outorgante, a contratar o Jaime, segundo outorgante, como motorista,
cozinheiro… e prestador de outros serviços considerados necessários. Os
oitocentos euros de ordenado a que ele estava habituado e que sairiam limpos
porque ele viveria em minha casa e teria direito a alimentação. Seriam esses os
meus argumentos. Claro que depois tinha os impostos, mas mesmo assim… deixaria
de pagar quarto, deixaria de pagar alimentação, deixaria de pagar transportes…
achei a argumentação imbatível.
Saí
do gabinete e senti um nó na garganta. Estava com as secretárias à sua volta a
riem-se, mais uma colega minha… riam-se divertidos. Ele estava a rir-se também…
com elas. Senti vontade de lhes atirar a muleta à cabeça, como atirara na noite
anterior ao sofá.
«controla-te,
Alexandre, controla-te»
Cerrei
os dentes e fiz um esforço sobre-humano, foi mesmo um esforço sobre-humano
porque só tive vontade de… o olhar dele era intenso, acho que não consegui
disfarçar bem porque acho que me adivinhou os pensamentos. Aliás, fui um bocado
bruto.
-
E o meu contrato, já está pronto? Ou a impressora também está a ouvir a
história em vez de estar a trabalhar?
Senti
o azedume nas minhas palavras e no meu tom de voz, mas há coisas que são
incontroláveis e eu estava sem forças para mais.
A
Susana respondeu-me à letra, estava no escritório há tempo demais para se
deixar intimidar por quem quer que fosse, era franca, leal e não engolia sapos,
se a provocavam, ripostava e ripostava imediatamente.
Acho
que não percebeu o verdadeiro sentido das minhas palavras, mas o Jaime
percebeu-o… elas tinham-se afastado dele e voltara a sentar-se, mas ele nunca
desviara os olhos de mim. Senti bem o seu olhar.
Como
é que eu agora lhe podia pedir para assinar o contrato? Sentia-me furioso… e
porque e que eu estava furioso? Só havia uma explicação lógica, eu estava
apaixonado outra vez… o Jaime atraíra-me desde a primeira vez que o vira e a
aproximação fizera-me apaixonar, não há outra explicação. Aconteceu em 24
horas? Só pode, não há outra possibilidade.
Passei
o resto da manhã a imaginá-lo a conversar com as secretárias, a conversar com
as minhas colegas, a imaginá-las a tirar-se a ele e ele a gostar, a imaginá-lo
a atirar-se a elas, a…
«raios
partam o homem»
Como se não bastasse, ao
almoço tive de levar as secretárias atreladas… é como dizem os brasileiros, «ninguém merece». Esta expressão só tem o verdadeiro sentido com a pronuncia brasileira... «ninguém merece!»
«raios
partam as mulheres»
Parece
que andam desesperadas, não podem ver um homem atraente que…
Estou
a ser injusto, confesso que não tive razões de queixa, fui eu o centro das atenções dele. Conversou com as mulheres, brincou com elas, provocou-as e tudo, mas eu
não tive a menor dúvida que se estava a exibir para mim, apenas isso, estava-me a
provocar e nem era uma provocação para me irritar, era uma provocação sensual,
a forma como me olhava permitiu-me perceber que era assim, que apesar do que
estava a fazer, era eu o centro das suas atenções.
Regressei
ao trabalho mais calmo. Voltei a ler o contrato. Metera-o na gaveta e ainda bem
que não o rasgara. Reli-o e decidi que estava bem, decidi que o poderia chamar
e pedir que o assinasse… dir-lhe-ia que o amava e que o queria comigo e só
esperava que não pensasse que aquilo era uma forma de o obrigar… não, ele não
pensaria isso, ele gostava de homens como eu e sentia-se tão atraído por mim
como eu estava por ele.
O
telefone tocou.
-
O Sr. Ernesto Dias já chegou, doutor!
Esquecera-me
completamente deste. Consultei a agenda rapidamente. Era uma ação de despejo a
inquilinos que não pagavam a renda. O Ernesto tinha quatro prédios nas Avenidas
Novas, um deles ao lado do meu. Sorri curioso por ver a expressão do Jaime perante aquele cromo.
Eu
acho que não há homem no mundo mais efeminado que o Ernesto Dias, duvido que
haja. Ele é do tipo que, mesmo amarrado e amordaçado, só pelo respirar se vê que é
gay. É um bom homem, franco, educado, encontrara-o várias vezes em bares gay e
assim que me via dava um grito que ecoava por todo o espaço. Ali felizmente era
mais contido.
Apesar
de tudo não disfarçava, gostava de dar nas vistas e fazia-o sem o mínimo pudor, sempre bem-disposto.
Dissera-me uma vez que demorara muito tempo a resolver o problema na sua
cabeça, mas quando decidira assumir-se, fizera-o para a vida, fizera-o para o
bem e para o mal. A sua filosofia era «eu não devo nada a ninguém, se dever
mandem-me a conta para casa e eu depois vejo se pago ou não».
-
Ai doutor, o que é que lhe aconteceu?
Tive
de sorrir. Olhei depois para o Jaime e vi-o cruzar os braços de sobrolho
franzido. Mas o que é isto?
-
Não foi nada, um pequeno acidente! – respondi atrapalhado, vendo o Jaime contorcer-se
como se estivesse sentado em cima de vidros
-
Não acredito, doutor! – o Ernesto levantou-se e veio ter comigo – conte-me
tudo!
Tentei
sorrir-lhe, mas o que vi foi o Jaime levantar-se a afastar-se rapidamente para
se servir de água.
Expliquei
ao homem que caíra e fizera umas luxações, mas a minha mente estava a tentar
perceber a reação do Jaime, o que é que se passara? Antes de entrar no
gabinete com o Ernesto percebi finalmente. Ele estava sentir o que eu sentira
antes, o seu olhar era de fuzilamento, era mesmo, fuzilou-nos aos dois sem a
mínima piedade… acabaram-se as dúvidas, ele estava com tantos ciúmes como eu
tivera. Acabaram-se os receios, acabaram-se as hesitações, ele sentia por mim o
que eu sentia por ele, não havia a menor hipótese de erro ou de equívoco.
Decidi naquele momento que lhe pediria para ficar comigo nessa noite, acabou-se
o medo de ser recusado.
Isso
fez-me sentir bem. Senti-me feliz, senti-me a flutuar. O Ernesto gostava de
mim, gostava de me provocar, gostava do ‘flirt’ a que eu nem sempre respondia,
mas brinquei com ele, respondi-lhe à letra e ele até se espantou.
-
Está muito bem disposto hoje! – comentara
-
Estou mesmo! – não tive problema nenhum em admitir, agora sabia bem o que fazer
À
saída do gabinete, quando o acompanhei como sempre fazia… vi o Jaime com ar de
“toda a gente me deve e ninguém me paga”. Braços cruzados, sobrolho franzido de
tal forma que mal lhe consegui ver os olhos, sentado direito como se estivesse
à espera que a poltrona se partisse.
Senti
o Ernesto afastar-se de mim. Vi o seu olhar penetrante e depois vi-o olhar para
o Jaime. Quando me encarou novamente a sua expressão dizia apenas uma coisa…
«eu
sei»
Estava
sem cabeça para trabalhar. Disse ao Jaime que me queria ir embora e ele correu
para a porta, desaparecendo. Parecia ainda mais desesperado para sair dali que
eu. Avisei que estaria contactável, mas que me poupassem, para que pudesse
descansar um pouco e desci para a rua. O meu carro apareceu logo depois e o
Jaime saiu a correr para me abrir a porta. Eu sentia-me já capaz de apertar o
cinto de segurança, mas não fiz nada, deixei-o fazê-lo, quis vê-lo curvado
sobre mim, quis sentir o seu perfume… ele estava tenso, mas olhou-me quando
recuava para sair do carro, fez o que não fizera na tarde anterior, olhou-me e sorriu-me. Estava amuado, mas sorriu-me à mesma.
Tive
de gozar um bocado os seus ciúmes, não resisti. Podia ter dito logo o que
queria, mas gostei de o ver amuado, gostei de sentir aquilo, gostei de ver que
estava tenso, foi a minha pequena vingança pelos ciúmes que me fizera sentir na
manhã. Ele olhava-me com frequência e eu acabei por o olhar também e
sorrir-lhe. Acabou por começar a descontrair, quanto mais avançávamos pela
ponte, mais relaxado ele ficava.
-
Foi um dia stressante, doutor!
Sorri outra vez.
-
Muito!
Não
falámos mais, tocou o telefone e era do escritório, teria de atender. Era a
Susana. Começou com assuntos profissionais, mas não resistiu a falar no Jaime,
que era muito bem-parecido, que era muito simpático… eu nem queria acreditar
que estava a discutir o homem que amava com a secretária do escritório, aquilo
era demais. Felizmente a linha caiu quando entramos na garagem, mas ainda
estávamos no elevador quando tocou outra vez. Irra! Parecia um mosquito carregadinho de dengue.
O
Jaime acabou por me explicar por sinais que ia começar a fazer o jantar, eu
acenei a concordar e fui para a sala, esticando-me no sofá… acabei por despachar a secretária, estava
sem paciência e não tinha pachorra para pensar naquilo.
-
Oh Susana mande-me um mail, pode ser? – disse um bocado mais ríspido do que pretendia –
eu estou cansado e não posso pensar nisso agora!
Finalmente
em silêncio, fechei os olhos para pensar no que dizer, de como dizer… já não me
importava que fosse eu a dar o flanco, não me importava de correr o risco de
ser recusado, já tinha a certeza que não o seria. Acabou por ser muito mais
simples do que pensei.
Senti-o
a aproximar-se, senti o seu olhar… abri os olhos, encontrando os seus fixos em
mim. Estava tenso, estava nervoso… percebi que provavelmente estaria na mesma
situação que eu, com os mesmos receios.
-
Quer que venha amanhã, doutor?
Vi-o
sacudir a cabeça, como se não fosse aquilo que queria dizer. tive vontade de rir. Estava tão nervoso como eu.
-
Não! – respondi pensando no que dizer a seguir
É
curioso como as coisas acontecem, mesmo quando não temos intenções de…
A
sua expressão mostrou-me que não o teria atingido com mais violência se lhe
tivesse espetado uma faca no estômago. O seu instinto foi recuar, mas reagi
rapidamente. Agarrei-lhe o pulso e segurei-lho com toda a minha força.
-
Fica comigo, Jaime! – pedi – por favor!
Ele
interpretara o meu ‘não’ de uma forma que não era a pretendida. A sua surpresa
foi flagrante e o seu sorriso foi… foi um alívio, foi confusão, foi surpresa,
foi prazer, prazer indiscutível.
-
A dormir aqui? – os seus olhos pareciam faróis em máximos
-
A dormir comigo! – agora ia sair tudo – eu hoje… no escritório…
Engasguei-me,
mas vi que ele percebeu bem o que eu queria dizer.
-
Tiveste ciúmes!
Era
uma afirmação, ele percebera, ele sabia que eu estava apaixonado, sabia.
-
Tive vontade de as espancar! – confessei deliciado com o seu sorriso e por me ter finalmente tratado por 'tu'
Tentei
levantar-me, mas ele não deixou, ajoelhou-se ao meu lado e a sua boca colou-se
à minha num beijo que eu queria sentir há muito.
-
Eu também tive! – admitiu finalmente
-
Eu sei! – fiz-lhe uma festa na face – queres ficar?
-
Não há nada que eu queria mais! – foi a sua resposta
Senti
os seus braços debaixo de mim e ergueu-me no ar. Levou-me para o quarto e
pousou-me suavemente na cama. Despiu-me rapidamente atirando-me a roupa para o
chão. Vi-o olhá-la e achei que pensara em ir dobra-la. Devia estar doido.
Agarrei-o pela gravata e puxei-o para mim. Mal o consegui ajudar a despir-se,
mas não precisei, ele fê-lo rapidamente e acabou por deixar cair o seu corpo
quente sobre o meu.
*** Jaime – final ***
Disse-lhe
que o amava e disse-lho com todas a letras, olhos nos olhos, sem medo, sem
stress, sem nada. Ele estava nu como eu, cansado como eu, a sorrir como eu. Ele
passou a mão no meu peito e disse que também me amava. Não sei se estremeci com
o toque, se estremeci com o prazer que tive em ouvir dize-lo, só sei que me
senti feliz. Devo ser o único português a agradecer ter sido despedido.
-
És o primeiro homem a quem digo isto! – senti-me um pouco estranho, mas não me
importei porque era a verdade
-
No que depender de mim, vou ser o único!
muito fixe.
ResponderEliminarobrigado, Zé ;)
EliminarMuito bom, muito bom mesmo. Todos os contos são ótimos, gostaria que escrevesse mais!
ResponderEliminarGostei muito! Escrevo do Brasil, Rio de Janeiro. Aqui não encontramos contos com essa sensibilidade e riqueza no linguajar. Algumas poucas expressões foram difíceis de compreender, mas, se me entende, não o foram de imaginar.
ResponderEliminarUma coisa que eu não sabia era essa formalidade no tratamento (tu e ele). Aqui não existe mais e nos contos homoeróticos só temos palavras chulas e com muitos erros de português.
Assim, foi difícil parar de ler, a vontade era ler tudo de ima só vez! Espero que poste mais contos.
Grande abço!
Obrigado aos dois pelos comentários... parei de publicar porque não tinha esse feedback... gosto de escrever, tenho escrito, mas chateei-me por não conseguir perceber se alguém estava a gostar ou não... gostei!! ;)
ResponderEliminarIncrível. Você escreve com uma sensibilidade e envolvimento que eu invejo. Realmente não encontramos contos com essa qualidade aqui no Brasil. Me apaixonei pelos personagens, o enredo e a cultura lusitana. As diferenças de tratamento e algumas palavras no Brasil e em Portugal deixam o texto mais gostoso de ler, tudo parece novidade haha. Continue postando! Abraço (:
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