*** Alexandre ***
Paguei
a conta do restaurante e arrastei-me até ao carro. Realmente há dias que são um
Inferno.
Ele
parara o carro tão próximo da porta quanto possível. Estava de porta aberta à
minha espera. Os seus olhos pareciam vazios, a sua expressão era parecida com a
de qualquer motorista profissional que me transportara. Fiquei confuso, senti o
seu cheiro quando se curvou sobre mim para me prender o cinto de segurança.
Podia-lhe ter beijado o pescoço ali mesmo… quis faze-lo, mas ainda bem que não
o fiz… nem me olhou, fechou a porta, contornou o carro e sentou-se ao volante.
-
Para onde, doutor?
Senti
dor no pulso e no tornozelo em simultâneo… foi de certeza uma descarga de
energia porque a sua frieza desorientou-me.
-
Preciso passar pelo banco! – consegui finalmente dizer – quero-lhe dar algum
dinheiro para voltar para casa! – fiz uma pausa, mas ele nem me olhou – já foi
simpático o suficiente! – terminei olhando para a rua para que não me pudesse
ver a morder o lábio
Ele
arrancou sem uma resposta. Aquele homem era o diabo encarnado e estava-me a
enlouquecer.
Saído
do banco, desejei ardentemente um olhar dele… tive um olhar de relance, quando
se endireitava para sair e… pasme-se… fiquei satisfeito com isso. O que estava
a acontecer comigo?
Estacionou
o carro com cuidado e acedeu a subir comigo. Observei-o através do espelho do
elevador… olhou-me várias vezes… que olhar era aquele? Seria curiosidade?
Admiração? Respeito? Seria o quê? Poderia ser interesse? Queria tanto que fosse
interesse… podia ser desprezo por perceber que sou gay… não, isso não podia
ser, não quero que seja!
Depois
vi a sua expressão a observar a casa, estava impressionado. Vi-o fixar-se no
meu quadro na lareira. Quis dizer-lhe que fora eu o modelo.
-
Gosta do quadro?
Vi-o
corar… gostei de o ver corar.
-
Gosto! – foi a sua resposta – mas não se percebe muito bem o que é!
Fiquei
curioso… estava a disfarçar? Via-se perfeitamente o que era, era um homem nu na
praia, era eu pintado pelo Hugo.
Expliquei-lhe
que cada pessoa vê algo diferente na arte, nunca admiti que me obrigassem a ver
algo que supostos especialistas decidiam que fosse.
-
O que vê, Jaime? – insisti para ver a sua reação
-
Não sei muito bem, mas gostos das cores, fica bem aqui!
Virou-me
as costas. Desviou o assunto, ou então não via mesmo nada, ou então não queria
falar do que via… se calhar até estava enojado a pensar que eu podia ter
dinheiro, mas não passava de um…
Senti
uma dor de cabeça a caminho. Troquei umas trivialidades com ele sobre o carro e
mais não sei quê e senti sempre que preferia enfrentar um tribunal hostil do
que falar com aquele tipo. Era confuso para mim, ele era um mistério.
-
Sempre posso contar consigo amanhã? – acabei por perguntar pois precisava saber
isso, era o que eu mais queria saber… a sua expressão de surpresa apanhou-me
desprevenido, foi como uma facada… estaria desesperado para se ver livre de mim?
-
Se mudou de ideias…
Quis-lhe
dar espaço para recusar, não queria que se sentisse obrigado ao que quer que
fosse.
-
Não, não, doutor, não mudei… a que horas me quer cá?
Sorri,
deliciado, confundido com as diferentes mensagens que ele transmitia, num
momento parecia querer desaparecer, depois isto… ele devia ser bipolar, ou
então estava mesmo decidido a enlouquecer-me.
Tirei
o dinheiro e estendi-lhe 60€. A sua expressão foi de nervos, quase fúria…
-
Não leve a mal, Jaime, mas quero que aceite este dinheiro! – disse o mais
docemente que consegui
Vi-o
a pensar algo que não disse… o que seria? Algo do tipo «deves pensar que me
compras» imaginei analisando a sua expressão irada.
-
É justo, Jaime! – disse tentando manter-me calmo – perdeu o seu tempo, vai ter
de comprar bilhetes de autocarro, é pelo seu incómodo! – ele preparava-se para
recusar, mas não o permiti – antes de recusar! – nem o deixei falar, fui duro
justamente para que não pudesse pensar que o queria comprar, nunca pagara para
ter alguém e aquela ideia ofendia-me profundamente, quis ser perfeitamente
claro – eu gosto de ser pago pelos meus serviços e geralmente sou bem pago,
gosto de fazer o mesmo… aceite, por favor!
Aceitou
o dinheiro e aceitou também a minha mão quando lha estendi. Novamente uma
expressão doce no seu rosto, novamente os olhos a brilhar.
-
Obrigado pelo que fez hoje por mim, Jaime! – disse-lhe a sorrir, feliz com a
sua expressão – foi inesperado e senti-me muito bem consigo!
O
seu olhar foi intenso, pareceu gostar do cumprimento, mas não respondeu.
Pareceu atrapalhado e afastou-se. Quando o vi abrir a porta da rua achei que
não o veria mais.
-
Jaime!? – chamei antes de conseguir pensar
Ele
virou-se… a sua expressão era hesitante… só queria que tivesse vindo ter
comigo, que…
-
Mudei de ideias! – disse-lhe
Vi-o
estremecer.
-
Já não quer que venha?
«Quero
que fiques comigo» pensei «quero tanto que fiques comigo», mas descobri que sou
um cobarde…
-
Quero que leve o carro! – foi a única coisa que consegui dizer – para que há-de
andar de transportes e eu ter o carro parado!
Achei
que ficou dececionado, embora não entenda bem porquê. De carro teria de voltar
mesmo. Não lhe disse o que queria dizer, mas senti-me mais seguro, podia ser
que no dia seguinte tivesse essa coragem.
-
Não precisa dele?
Mostrei-lhe
o pulso a rir.
-
Duvido muito!
A
sua expressão quando lhe dei a chave parecia a de uma criança quando se lhe
oferece um presente, ele gostara claramente do carro, os seus olhos brilhavam.
Agora, mesmo que ganhasse coragem, não era capaz de lhe pedir para ficar.
Disse-lhe um «até amanhã» apressado e coxeei o mais rapidamente que pude de volta
à sala. Quando ouvi a porta a bater atrás de mim atirei a muleta com toda a
força para o sofá e senti as lágrimas inundarem-me os olhos. Aquele homem
estava-me a dar cabo da cabeça.
Chorei
mesmo, chorei por ser um cobarde, chorei por não o entender, chorei por não me
conseguir fazer compreender, chorei pela minha queda, descarreguei todas
emoções e todas as frustrações do dia… todas, chorei até adormecer no sofá,
exausto.
Acordei
perto das 21horas, mais calmo, mais descansado… cheio de sede. Triste, mas
sentindo-me bem melhor… o pulso não doía muito, o tornozelo também não, o
coração… esse doía-me um bocadinho. Estaria apaixonado? Não, isso não podia
ser, ninguém se apaixona assim e eu não acredito no amor à primeira vista… ele
tinha qualquer coisa que me deixava doido de desejo, estava a sentir-me cada
vez mais atraído por ele… se calhar é isso que é a paixão inicial,
provavelmente estaria realmente apaixonado.
O
telefone tocou. Revirei os olhos. Vi-me a caminho da esquadra da polícia para
tentar libertar um idiota bêbado. Desta vez não tinha sorte, eu não podia sair,
fosse quem fosse. Não conhecia aquele número, mas pelo menos não era um número
incógnito.
-
Boa noite, doutor, desculpe ligar-lhe a esta hora!
Tive
vontade de atirar o telefone à parede, era sempre assim que começavam os
problemas.
-
Quem fala? – consegui não ser rude, mas também não fui simpático… fiz de
propósito
-
É o Jaime!
-
Jaime! – senti um sorriso a abrir-se sem que o pudesse controlar, nem queria
faze-lo, o meu coração disparou imediatamente – está tudo bem?
-
Desculpe ligar-lhe, mas revistei-lhe o carro à procura do seu número e
encontrei um cartão pessoal!
-
Ainda bem que ligaste!
Apercebi-me
imediatamente que o tinha tratado por ‘tu’, não pensara… fez um silêncio momentâneo
e senti vontade de bater com a cabeça na parede.
-
Desculpe trata-lo assim, nem pensei! – apressei-me a dizer – acordei agora e
ainda não consigo pensar devidamente… está tudo bem, aconteceu alguma coisa?
Ouvi
um baque que não percebi o que era.
-
Não faz mal! – ouvi num tom que não dava para identificar – liguei para…
pronto, para ficar com o meu número, no caso de ser preciso alguma coisa!
-
Ah sim, obrigado! – esperava algo mais… não sei – por acaso já tinha pensado
nisso! – tentei disfarçar a deceção
Novo
baque do outro lado. Estava mesmo para lhe perguntar o que era aquele barulho
quando ele tornou a falar.
-
Lembrei-me que podia querer… não sei se toma o pequeno-almoço em casa, mas
posso ir mais cedo e parar para comprar pão!
Aquilo
deixou-me literalmente de boca aberta.
-
Está aí, doutor?
-
Estou sim… fiquei sem fala e olhe que não é uma coisa fácil de acontecer!
Senti-o
sorrir do outro lado.
-
Eu vou acordar às 7 de qualquer maneira… e como o doutor de certeza não
consegue preparar o pequeno-almoço!
-
Juro-lhe que se me diz que sabe cozinhar eu penso muito seriamente a
arranjar-lhe um contrato a sério!
-
Um contrato a sério? – foi a vez dele ficar surpreendido
-
Sim… para motorista, cozinheiro e sei lá mais o quê…
-
Eu preciso de trabalhar, doutor… e sei fazer tudo em casa!
Engoli
em seco.
-
Pelo que já vi tem muitas facetas… foi um motorista perfeito!
-
Então apareço mais cedo?
-
Bem, eu levanto-me às oito… antes disso apanha-me a dormir!
-
Vou ter cuidado, doutor! Vou ter de desligar porque vou ficar sem saldo! Até
amanhã!
Desliguei
o telefone perplexo. O que fora aquilo? Ele ponderara a hipótese de trabalhar
para mim? Pareceu-me disponível para isso, para me conduzir, cozinhar e essas
coisas todas… eu teria percebido bem?
Fui
para a cama a pensar nisso, a pensar no Jaime e na ideia dele trabalhar para
mim, teria de vir viver comigo… essa ideia agradava-me, agradava-me muito, eu
gostara da sua companhia, eu gostara dele. Tornei a adormecer imaginando o seu
corpo nu.
O
despertador tocou às 8 horas. Dei-lhe um murro e sentei-me na cama. Há muito
tempo que não acordava assim, pronto para me levantar. Mas tinha boas razões
para isso, dali a pouco teria o Jaime a tocar-me à campainha. Vesti o robe e
abri a torneira do duche para a água aquecer. Coxeei até à cozinha para ligar a
máquina do café e regressei o mais rapidamente que pude, queria-me despachar,
queria estar pronto quando ele chegasse.
A
campainha da porta tocou.
«raios
partam» pensei
Era
a porta cá de cima, o toque era diferente da campainha do prédio. Se tocava já
cá em cima, significava que entrara pela garagem, só podia ser ele. Olhei-me no
espelho e tentei desesperadamente alisar o cabelo que estava completamente em
pé.
Espreitei
pelo óculo da porta… claro que era ele.
Abri
a porta de boca aberta, nem queria acreditar. O Jaime estava de fato, de fato
mesmo, um fato cinza escuro, camisa cinza claro e gravata nos dois tons de
cinza. Olhei-o de cima abaixo, incrédulo… estava deslumbrante, impecavelmente
vestido, com o saco de compras na mão, os olhos a brilhar e um sorriso
divertido nos lábios.
-
Bom dia, doutor!
-
Ainda não tomei duche! – consegui dizer com alguma dificuldade
-
Precisa de ajuda? – o seu olhar foi intenso, pareceu provocador
Ou
então fui eu a ver coisas.
-
Acho que não! – consegui sorrir – entre, vou tentar ser rápido!
Pelo
menos a afastar-me para a casa de banho fui bastante rápido. A minha cabeça
rodava, não o esperara tão cedo. Tirei as ligaduras com um sorriso nos lábios,
eu também fora analisado dos pés à cabeça, bem vira os seus olhos a
percorrerem-me o corpo, vira-o sem sombra de dúvidas e vira perfeitamente que
gostara.
Deve
ter sido o meu record a tomar duche, o banho mais rápido da história… a mesma
coisa a cortar a barba, mas aí demorei o tempo necessário, não me queria esfaquear,
já estava lesionado o suficiente. Pensei vestir-me primeiro, mas queria falar
com ele, queria vê-lo bem… fui para a cozinha.
Encontrei
os seus olhos fixos em mim, brilharam como quando lhe abrira a porta.
-
Café simples ou com leite, doutor?
-
Café de máquina! – respondi, colocando uma pastilha – cheio!
Olhei-o
enquanto cortava uma sandes ao meio. Devia ser para mim.
-
Já tomou café?
-
Já, doutor, obrigado! – olhou-me a sorrir, gostara que lhe tivesse perguntado
Sentei-me
tentando não o olhar demasiadamente. Foi difícil parecer natural e descontraído.
-
O Jaime hoje está… – faltava-me a palavra, só me lembrava de ‘deslumbrante’,
mas o queria usar já – impecável!
Quase
que senti vergonha de ser um homem que vive do uso das palavras e não me
lembrar de um adjetivo melhor para o qualificar. Vi a sua expressão à terceira
colher de açúcar.
-
O doutor é guloso! – fixou-me a sorrir
Era
mais uma afirmação que uma pergunta. Tive de me rir, toda a gente gozava com a
quantidade de açúcar que sempre ponho no café. Às vezes irritava-me e perdia a
paciência, mas eu estava feliz por ele estar comigo.
-
Não sou, tenho bom gosto… guloso é quem gosta de tudo, que come tudo e bebe
tudo… quem gosta de coisas boas simplesmente tem bom gosto! – sorri-lhe sem
dizer o que mais estava a pensar «é por ter bom gosto que estou a adorar ter-te
aqui comigo»
Ele
riu-se.
-
Ninguém pode por em causa o seu bom gosto! – disse a rir – o seu bom gosto é…
-
Inegável! – tentei disfarçar o prazer que me deu a sua expressão – isso quer
dizer que vou receber uma multa na próxima semana?
-
Espero que não! – fez uma expressão de garoto mal comportado, apanhado em
flagrante
-
Abusou dele?
-
Não, doutor! – mordeu o lábio de uma forma extremamente sexy – ele tinha dado
mais do que eu lhe pedi!
«exatamente
como eu» pensei imediatamente
O
telefone tocou… diabos levassem a gente do escritório. Um cliente a querer
saber se o poderia receber mais cedo. Tinha de ser, aquele era dos que não
gostavam de ouvir «não» e eu não me podia dar ao luxo de o fazer, a avença com
aquela empresa era polémica, constantemente processada e portanto uma das
minhas principais fontes de rendimento.
-
Temos de sair mais cedo! – suspirei para o Jaime
-
Mais uma trapalhada para o doutor resolver! – sorriu simpaticamente
-
É o que eu faço! – encolhi os ombros sentindo-me feliz – não me tenho dado mal
nesse campo!
A
única coisa em que me dava mal era em resolver as trapalhadas da minha vida
pessoal, mas isso acabaria por ter uma solução mais tarde ou mais cedo… cada
vez acreditava mais que seria mais cedo.
Sentia-me
bem-disposto, sentia-me feliz… o fato azul era demasiado escuro, optei pelo
castanho, queria uma cor clara, uma cor mais de acordo com o meu estado de
espírito.
Foi
uma boa escolha, quando cheguei à sua frente o seu olhar mostrou-mo sem sombra
para dúvidas… um olhar intenso, de análise, um olhar que demonstrava ter
gostado do que viu.
-
Está muito bem, doutor!
As
palavras eram simples, mas a sua expressão dizia mais que isso.
-
Achas? O nó da gravata deu trabalho, mas não é fácil usar uma só mão!
Percebi
que o tinha tratado por ‘tu’ novamente, mas não me importei, eu não conseguia
tirar os meus olhos dos dele e do que via neles. Não conseguia parar de sorrir
e ele também não o fez… ou não reparou que eu o tratara por ‘tu’, ou desta vez
não se importou.
-
Eu tive de fazer meia dúzia antes de ficar tolerável!
Decidira
que seria mais corajoso e fui-o… levei a mão à sua gravata e, na verdade não
fiz nada, mas toquei-lhe. Ele estremeceu, não aguentou o meu olhar, acabou por
me conseguir voltar a encarar e fê-lo com um enorme sorriso que teve um duplo
efeito em mim. Adorei aquele olhar, adorei a sua reação e amaldiçoei o Pires de
Andrade pela reunião… se o homem não fosse quem era e tivesse o impacto que
tinha, juro que teria desmarcado.
Gostei mas fiquei um bocado dececionado. não sei explicar. tanto stres e depois resolvem as coisas tão depressa.gostei nuno, mas achei o fim apressado.
ResponderEliminaré curioso que digas isso... viste o ponto de interrogação? escrevi 'final?'. Eu tive a mesma sensação, mas quis publicar à mesma. Se teve o efeito de te fazer escrever um comentário... fantástico! Muito obrigado.
EliminarJá alterei ambas a versões vou alterar este post colocando apenas a versão do Alexandre, vou ver se ainda consigo alterar a do Jaime hoje. Fica a faltar o final.