Sentei-me
na cama sem vontade nenhuma de me levantar. Era a primeira vez que isto me
acontecia na vida, mas hoje ia ser um mau dia, toda a gente devia estar na
mesma situação, todos os meus amigos.
Forcei-me
a levantar e fui espreitar a rua… carros a passar, autocarros cheios de gente,
as pessoas iam para o emprego. Eu também iria, apesar de saber que era o meu
último dia. O que faria a seguir? Como seria andar a bater de porta em porta
pedindo como um mendigo e ouvindo as respostas que sabia serem o normal na
maior parte dos casos «de momento não precisamos de ninguém».
Olhei
para o espelho vendo o meu corpo nu. Tudo no sítio, por enquanto. Com 29 anos
ainda consegui ver o puto que conquistara a minha ex. Percebi bem porque lhe
custara o meu pedido de divórcio, porque se zangara comigo, porque gritara,
porque quase acabara a suplicar para que eu não saísse de casa, ela sempre fora
extremamente física, sempre vira o meu corpo, sempre vira a minha cara, nunca
percebera que eu não era exatamente feliz. O problema não era dela, era meu.
Amara-a durante anos, tolerara-a durante algum tempo e finalmente chegara ao
ponto em que não a suportava mais. Não foi por ela ter engordado um pouco, nada
disso, foi por eu ter percebido que não aguentava mais tempo com uma mulher,
simplesmente não aguentava mais. Durante anos tínhamos feito amor, depois não
passava de sexo, depois dei comigo a fechar os olhos e a pensar que era um
homem que estava debaixo de mim… finalmente percebi que não valia a pena
enganar-me mais, era mesmo um homem que eu queria, era por um homem que eu
ansiava diariamente.
Saí
do quarto e atravessei o corredor para a casa de banho. Tomei duche rapidamente
e vesti-me a correr. Queria ser o primeiro a chegar ao trabalho, sempre fora
assim e seria igual no último dia.
-
Bom dia, Jaime! – a empregada do café correu para mim como habitual, pelo menos
desta vez não virara as costas a um cliente para me atender – café?
-
Bom dia, Maria… se faz favor…
Sorri
à mulher que corou como também era habitual. Sempre tive imenso sucesso com as
mulheres… desde miúdo, na escola. Joguei futebol e tinha as minhas fãs, a minha
mulher era uma delas. Mesmo depois de casar habituei-me a que as mulheres
fossem simpáticas comigo, raramente tinha dificuldades nas repartições
públicas, houve períodos em que até me convenci que a aliança que tinha no dedo
as atraia ainda mais, mas nunca traí a minha mulher, nunca. Se calhar por isso
é que acabei por não aguentar mais, se o tivesse feito, se tivesse tido os meus
casos como muitos homens casados, se calhar ainda estava com ela e éramos os
dois felizes, mas eu não sou assim.
Saí
do café e encostei-me na paragem à espera do autocarro. Lembrei-me daquela
madrugada em que, ao entrar, vi dois putos que me comeram com os olhos…
literalmente. Vinham da noite, não tive a menor dúvida em relação a isso. Um
deles saiu antes de mim, o outro continuou a olhar-me duma forma muito pouco
discreta até eu me levantar para sair. Não sei dizer o que me passou pela
cabeça, mas fiz-lhe sinal para sair comigo… e ele seguiu-me. Abrira o portão da
obra e ele entrara atrás de mim. Quando me virara depois de trancar o portão já
ele estava de joelhos à minha frente a abrir-me as calças. Só parara quando eu
me descontrolei e explodira na sua cara. Perguntara-me se eu gostara e eu respondera
que sim… gostara mesmo. Foram as únicas palavras que trocamos, estavam a chegar
os trabalhadores e ele escondeu-se atrás duma pilha de tijolos. Eu tornara a
abrir o portão, os homens entraram e ele esgueirara-se para fora a correr.
Nunca mais o vira.
Nesse
dia, ao chegar a casa, fizera as malas e saíra de uma vez por todas. Era de
homens que eu gostava e não havia nada a fazer quanto a isso, dez anos de
casamento e uma mamada atrás duma pilha de tijolos tinham sido mais que
suficientes para eu perceber isso.
Eram
9 horas quando os meus trabalhadores começaram a chegar. É curioso como
acabámos num círculo, em frente ao escritório, a conversar. O assunto era
óbvio, o Sr. Pacheco não aguentava mais e ia parar. Eu estava triste, revoltado
como todos, mas não conseguia estar chateado com ele, acho que nenhum de nós
conseguia. Ele fizera de tudo, aguentara tudo, fizera o que fora possível para
aguentar a empresa, mas não havia hipótese. Toda a gente se lembrava de termos
quatro obras ao mesmo tempo e quase 120 pessoas a trabalhar, agora éramos 15
numa obra acabada e éramos os últimos.
O
tempo passou sem darmos por isso… entre os comentários sobre o único assunto
que nos ocupava a cabeça e os longos silêncios…
Quando
chegou o Sr. Pacheco, pediu-me para esperar pelo advogado e fechou-se no
escritório. Estava velho e acabado. Começara do nada e crescera sozinho,
passara de servente a pedreiro, de pedreiro a encarregado, criara a sua própria
empresa e agora… comigo fora a mesma coisa e ele sempre gostara de mim por isso, sempre
me tratara com carinho e consideração, comecei como servente e acabei
encarregado, foi o único patrão que tive na vida.
A
nossa frente parou um VW Scirocco azul… lindo.
-
Olha este filho da puta! – ouviu-se
-
Este corno é dos que ganha com a nossa miséria!
Nem
comentei, vi o advogado sair do carro, vi o fato ‘boss’, a pasta de pele, os
óculos de sol.
-
O filho da puta… – disse também, mas não verbalizei o resto da frase… «és podre
de bom»
-
Bom dia senhores! – disse ele fixando os olhos em mim
-
Bom dia, doutor Alexandre, o Sr. Pacheco está à sua espera!
Vi-o
olhar para o relógio, parecendo sobressaltado.
-
Não estou atrasado!
-
Não senhor! – tive vontade de sorrir… o homem tinha imensa pinta e era um
‘senhor’, mas depois tinha estas coisas assim
Quase
todos já o conhecíamos, ele era o advogado do patrão e já trabalhava connosco
há vários anos. O Sr. Pacheco dizia que ele era bom e eu concordava,
fisicamente era mesmo bom.
Era
mais baixo que eu, não devia ter mais de 1m70, mas não devia ter mau corpo,
pelo menos não tinha barriga, as suas camisas imaculadas não a poderiam
esconder. Eu fora uma vez ao escritório e vira-o em mangas de camisa e vi uns
braços peludos… andava sempre impecavelmente vestido, os fatos, os sapatos, os
acessórios. Sempre que o via olhava para a sua mão esquerda, continuava sem
aliança, tinha apenas um anel de curso.
Finalmente
tirou os óculos de sol… olhos doces, cor de mel… como é que um homem de olhos
tão doces pode ser advogado? Os advogados são guerreiros, não podem ser assim.
-
Está-se a preparar para nos dar a facada! – ouvi um murmúrio atrás de mim
Seria
isso? Seria estratégia para enganar os saloios?
-
Bom dia novamente, senhores, tenho aqui uma série de documentos para vos
entregar…
Perdi-me
de olhos fixos nos seus lábios. Via-o falar mas não ouvi uma única palavra… só
quando sentia os seus olhos fixos em mim é que tomava atenção, podia-me estar a
fazer uma pergunta.
Mas
não, falou comigo como falou com todos, a reunião terminou, recebemos as cartas
de despedimento e a carta para o fundo de desemprego e pronto, acabou tudo.
Esperei que ele esclarecesse as dúvidas do pessoal e tranquei o portão vendo-os
afastarem-se de mãos nos bolsos, parecendo tão desorientados como eu me sentia.
Do outro lado o advogado dirigia-se apressado para o carro. Vira a sua
expressão de alívio quando a reunião terminara e achei que aquilo fora tão
penoso para ele como para nós… ou se calhar era eu que via as coisas como
gostava que fossem.
«Adeus,
doutor Alexandre» pensei tristemente que nunca mais o veria
Não
estava destinado a ser assim. Vi-o escorregar e desequilibrar-se, vi a pasta
voar e vi-o a lutar para se manter em pé até ao momento em que chocou
violentamente contra a parede… o baque foi estrondoso, foi mesmo, rodou sobre
si próprio e aterrou ao lado do carro. Ouvi um novo baque quando bateu com a
cabeça na roda do carro e confesso que fiquei dois ou três segundos sem
acreditar no que estava a ver. Já assistira a muitos acidentes, sempre
trabalhei nas obras, mas nunca vira nada como aquilo.
Corri
para ele.
-
Então, doutor!? – foi a única coisa que me veio à cabeça para lhe dizer
-
Já viu isto?
Por
um momento tive vontade de rir da sua expressão atordoada, estava completamente
desorientado, o que era novo para mim, sempre o vira seguro de si, com um ar confiante, concentrado
e expressão competente… agora parecia um garoto que tinha caído sem saber bem o
que tinha acontecido, só lhe faltava fazer beicinho. Mas quando me olhou, o sorriso morreu-me nos lábios,
chocara contra a parede e tinha um enorme rasgão na face esquerda que começava
a sangrar.
-
Magoou-se, doutor? Está sangrar!
-
O quê?
Tentou
levantar-se, mas vi uma expressão de dor… magoara-se mesmo. Ajudei-o e vi bem
que aquilo não era só uma queda de nódoas negras, sem consequências, não fora apenas o seu amor-próprio
e a sua dignidade que tinham sido atingidos, a dor era física e eu já tinha
visto aquilo mais que uma vez, para saber que era pior do que ele poderia
pensar… se lhe doía agora, pior ficaria quando a adrenalina provocada pela
queda passasse.
A
sua expressão era de confusão a olhar-me. O poderoso e confiante advogado
tornara-se uma criança confusa e indefesa. Tirei o lenço do bolso para lho por
na cara e estancar o sangue, habituara-me há anos a trazer um comigo, um lenço
lavado é sempre útil numa obra onde estão sempre a acontecer acidentes. Ele
tinha o fato sujo, mas a lavandaria resolveria o problema, se lhe caísse
sangue… seria mais complicado. Ele estremeceu quando lhe toquei, mas não
consegui saber que foi dor ou…
-
É melhor ir ao hospital, doutor!
-
Não é preciso…
Tentou
sorrir, mas vi dor novamente no seu rosto. Eram todos iguais, que mania de se
fazerem fortes. Apontei para o vidro do carro fazendo-o olhar-se.
-
Já se viu bem?
Acabei
com ele no Amadora-Sintra. Liguei ao António e ele estava à nossa espera quando
chegamos. Abriu a boca de espanto quando nos viu. A bicha tarada, comeu o
advogado com os olhos, mas fiz-lhe sinal para nem abrir a boca… uma coisa era
ir tomar um copo com ele, vê-lo no engate e, apesar de ser efeminado, era um
bom tipo e eu gostava dele. Só fui para a cama com um homem na vida e foi
graças a ele… eram amigos, o António ficou com um e eu fiquei com outro. De
momento era o único amigo que eu tinha, mas precisava de o manter de rédea
curta porque era um desbocado. Vi bem o seu sorriso quando olhou para trás antes de desaparecerem os dois no hospital.
Apanhei
uma seca fenomenal à espera, mas não me custou tanto como se possa parecer.
Fizera-o durante anos para agradar a mulheres, principalmente à minha, agora
estava a faze-lo por um homem… mais uma coisa que não era assim tão diferente…
gosto de homens, mas as secas são iguais.
Tive
pena dele quando apareceu… um penso na cara, a coxear com uma muleta, o pulso
enfaixado, o braço ao peito e uma expressão desconsolada estampada no rosto…
parecia um miúdo perdido.
-
Então, doutor, foi sério? – quase sorri com a sua resposta
-
Parti-me todo! – disse-me com um ar que me apeteceu abraça-lo
Ofereci-me
para o levar a casa. Ele não podia conduzir de maneira nenhuma. Fez-se difícil,
mas acabou por aceitar… já vira isto muitas vezes e já me magoara mais que uma
vez, ficamos sem saber bem o que fazer, frágeis e desorientados. Ele morava do
outro lado do rio, mas eu via os autocarros do Montijo a chegarem à Praça de
Espanha todos os dias, não seria difícil voltar a casa… a casa… ao quarto
minúsculo que alugara.
Gostei
que se preocupasse em saber como regressaria, mas a conversa não foi fácil… ele
parecia não ter recuperado do trambolhão e eu… eu não o compreendia, sempre
pensara que os advogados falam com toda a gente sem o mínimo problema, vira-o
nas reuniões, descontraído, confiante, mas parecia não saber o que me dizer… na
certa considerava-me um parolo e não conseguia falar com pessoas do meu nível.
Vi-o falar com a secretária a desmarcar as reuniões dessa tarde, vi-o falar com
o patrão sem esse tipo de problemas. Comigo o assunto morria rapidamente. Não
sabia o que fazer.
Mas enquanto
ele falava ao telefone, pude gozar o carro. Que bomba, era só dar um cheirinho no
acelerador e o bicho dava um salto, colando-me a cabeça ao banco. Devia ser
maravilhoso ser-se rico.
Quando
desligou a última chamada parecia desconsolado. Queria ir trabalhar no dia
seguinte e falou em chamar um táxi. Tentei outra vez.
-
O doutor precisa dum motorista?
-
Eu sei lá do que é que preciso… acho que vou precisar de uma ama-seca!
Aquela
resposta dura e irritada magoou-me, mas a sua expressão era tão engraçada que
tive de me rir… o advogado fino e poderoso precisava de apoio e estava
atrapalhado. Gostei de ver a sua expressão suavizar-se quando me viu a rir e
acabou por sorrir também.
-
Se me disser uma hora, eu posso vir busca-lo amanhã! – tentei uma vez mais
-
Fazia isso? – vi que ficou espantado
-
Porque não! – respondi – não sou exatamente um homem ocupado!
Os
seus olhos brilharam e senti o olhar de advogado que me deixava de cabeça a
andar à roda. Não foi o que me fez reparar nele, era demasiado atraente para
precisar disso, mas foi o que me fez… era o que me deixava sem jeito à sua
frente. Era um olhar penetrante que me absorvia e parecia sugar-me os
pensamentos… não sei se adivinhou o que eu estava a pensar ou não, mas olhou
para o relógio e convidou-me para almoçar.
O
restaurante era… ou melhor, o restaurante era normal, mas estava situado num sítio
deslumbrante. Era à beira rio, mesmo em frente à zona da expo… eu sei que não
se chama assim, mas participei na sua construção, para mim vai ser sempre a
expo, mudem-lhe o nome as vezes que quiserem. Tinha uma pequena praia, a maré estava
vazia e quase se podia pensar que dava para ir a pé para Lisboa. Ao fundo a
cidade.
Vi
logo que ele era um cliente habitual e devia deixar boas gorjetas porque foi
tratado nas palminhas e mesmo àquela hora serviram-nos choco frito. Estava
muito bom, muito bom mesmo, ou então era eu… há meses que não sabia o que era
comer num restaurante… primeiro a crise, depois a separação, agora tinha o
dinheiro todo contado.
Ele
pareceu ir-se descontraindo lentamente, perguntou coisas sobre mim, pareceu
muito interessado no meu divórcio… eu sentira o olhar diferente desde que saímos
do hospital… às tantas estava desesperado para se ver livre de mim, a pensar «como
é que eu me livro deste paneleiro». Mas ofereceu-se para pedir a um colega que me
ajudasse no divórcio. Aquilo tocou-me, eu bem que precisava porque ela não me
queria dar nada do que eu tinha ajudado a construir.
Era
confuso, por um lado parecia… não sei, interessado, mas por outro não parecia
nada. Senti-me com falta de ar e a sua expressão de dor deu-me a hipótese de
sair dali por um momento. O António tinha dito para ele tomar um medicamento
quando voltasse a sentir dores e fui ao carro buscar-lho. Vi a sua expressão de
surpresa quando peguei na chave do carro dele e me levantei, mas não disse
nada.
Dei
um chuto na roda do carro sem saber o que pensar, o que é que estava a
acontecer comigo? Sentia-me baralhado, não sabia o que pensar, não percebi nada
daquilo… de vez em quando fazia-me acreditar que… depois… ele não gostava de
homens e eu é que era um perfeito anormal. Peguei nos medicamentos e fechei a
porta com violência. Iria pôr-me a andar assim que conseguisse.
O
seu olhar era penetrante enquanto eu atravessava o restaurante na sua direção. Dei
comigo a sorrir feito idiota. Foda-se, é preciso ser-se estúpido… o que é que
se passava comigo?
-
Obrigado Jaime!
Apenas
aquilo e eu senti-me… como é que é possível?
-
O António disse para tomar um destes quando começasse a sentir dores! – foi o
que me veio à cabeça
-
Eu ouvi, obrigado!
Novamente
aquele sorriso que não dava para entender o que significava e que me fazia
pensar que ele se estava a divertir às minhas custas, que estava a brincar
comigo. E eu, parvo, vejo-o atrapalhado com a caixa e vou ajudá-lo… pior, faço-o
a sorrir, satisfeito por o poder ajudar.
E
o retorno? Engoliu-o, bebeu o resto da água e fixou-me nos olhos…
-
Vamos embora? – perguntou com uma expressão de quem ficara atrapalhado com a
situação – estou a sentir-me cansado, não devia ter bebido sangria!
Mal
lhe tocara, mas ele ficou atrapalhado e despachou-me… puta que o pariu… a ele e a mim que
estava caidinho…
-
Também não me lembrei, doutor! – tentei parecer bem disposto – pelo menos vai
dormir descansado… vou buscar o carro!
Saí
do restaurante com os dentes cerrados. Sentia-me furioso, sentia-me… triste…
basicamente estava triste… eu devia saber perfeitamente que ele não era milho
para o meu bico.
Parei
o carro à porta do restaurante e saí para o ajudar. Era o motorista, pois bem,
seria o motorista.
Ajudei-o
a apertar o cinto de segurança, ele não o conseguia fazer por causa do pulso. Senti
o seu olhar sobre mim, mas não o encarei. Fechei a porta e contornei o carro
para me instalar ao volante.
-
Para onde, doutor? - tentei parecer profissional e ele demorou um segundo para responder, pareceu surpreendido, não sei bem
-
Preciso de passar pelo banco, quero-lhe dar algum dinheiro para voltar para
casa… já foi simpático o suficiente…
Cerrei
os dentes e arranquei… segui as suas instruções, parei onde me mandou, esperei
que ele levantasse dinheiro e ajudei-o novamente a instalar-se no carro. Depois
fomos para sua casa.
O
seu prédio tinha uma arquitetura fantástica, toda a zona era moderna, bonita e bem
cuidada. Zona de ricos. O acesso à garagem era manhoso, apertado, mas estacionei o carro
sem problemas e esperei que ele fechasse o portão.
-
Importa-se de subir comigo?
-
Claro que não, doutor!
Acho
que ainda tive esperança que, mas não, não me olhou uma única vez enquanto subíamos
para o último andar. Claro que ele tinha de viver no último andar, só podia.
O
apartamento era um sonho… um sonho. Grande, estava decorado com imenso gosto, mobílias
simples, mas de aspeto caro, a parede cheia de quadros, todos eles assinados… nunca
liguei a isso, mas sabia que os quadros assinados eram únicos e caros. Gostei de
quase todos, mas vi o principal, estava na parede da lareira e era um homem,
era um homem sim e estava nu. Quadros de merda, coisas modernas que um gajo
olha e não percebe bem o que lá está... mas era um homem nu, de certeza absoluta.
-
Gosta do quadro?
Olhei
para ele e senti-me corar. Foda-se, eu já não tenho idade para corar, mas o seu
olhar era aquele que já sabemos, senti o calor na cara e soube bem que estava a
corar.
-
Gosto! – confessei, até porque era a verdade – mas não se percebe muito bem o
que é!
-
O que este tipo de arte tem de belo é que cada pessoa vê o que quer e
interpreta de maneira diferente… o que é que vê, Jaime?
Virei-lhe
as costas para olhar o quadro. Sentia a cara a ferver.
-
Não sei muito bem! – consegui responder – mas gosto das cores! Fica bem aqui!
-
O pintor é meu amigo, foi feito por encomenda…
«só
podia»
-
Eu gosto muito de arte! - disse perante o meu silêncio
«claro
que gostas e tens dinheiro a potes para a comprar»
Senti-me
acalmar e tornei a encara-lo… o seu sorriso era simpático, mas os seus olhos
devoravam os meus.
-
Tem muito bom gosto, doutor!
-
Gosto de pensar que sim!
-
Tem mesmo, a casa, o carro, os quadros!
Riu-se.
-
Gostou do carro?
Dei
comigo a sorrir outra vez.
-
Oh doutor, claro que sim! Aquilo é que é um carro!
-
É o que eu acho também… nunca viu o anúncio da VW? «das auto», o carro!
«ainda
por cima fala alemão»
-
Sempre posso contar consigo amanhã?
Aquilo
apanhou-me de surpresa. Acho que não consegui disfarçar porque ele mostrou surpresa
também.
-
Se mudou de ideias…
-
Não, não, doutor, não mudei… a que horas me quer cá?
Vi
o seu sorriso com a minha resposta apressada. Não sei se estava brincar comigo,
se o que era, mas sentia-me exausto… a cabeça duma pessoa tem um limite de
resistência e a minha já não dava mais.
-
Às 9, pode ser?
-
Claro que sim!
Senti-me
feliz, ia vê-lo outra vez… como é que isto se explica?
Vi-o
meter a mão no bolso e tirou 3 notas de 20€.
-
Não leve a mal, Jaime, mas quero que aceite este dinheiro!
-
Oh doutor! – exclamei quase irritado «mas ainda não percebeste que eu não estou
aqui pelo dinheiro?» o meu cérebro gritava, mas não saiu nada
-
É justo, Jaime! – disse ele calmamente – perdeu o seu tempo, vai ter de comprar
bilhetes de autocarro, é pelo seu incómodo… antes de recusar! – pensei protestar mais, mas a sua voz
endureceu, impondo-se – eu gosto de ser pago pelos meus serviços e geralmente
sou bem pago, gosto de fazer o mesmo… aceite, por favor!
E aceitei…
pensei não o fazer, mas aceitei, com aqueles olhos fixos em mim não lhe conseguia dizer que não .
Estendeu-me
a mão.
-
Obrigado pelo que fez hoje por mim, Jaime! – disse a sorrir – foi inesperado e
senti-me muito bem consigo!
Apertei-lha
e percebi que eu também estava a sorrir outra vez. Aquele cabrãozinho deixava-me sem resistência. Nem respondi, senti-me um bimbo.
Já
estava para sair quando o tornei a ouvir.
-
Jaime!?
Virei-me
sem saber o que esperar.
Ele
coxeou para mim.
-
Mudei de ideias!
O
meu coração deu um salto.
-
Já não quer que venha?
-
Quero que leve o carro! – foi a resposta com um sorriso – para que é que há-de
andar de transportes e eu ter o carro parado na garagem?
-
Não vai precisar dele?
Fez
um sorriso de gozo mostrando-me o pulso enfaixado.
-
Duvido muito!
Senti-me
estúpido enquanto ele me metia a chave na mão.
-
Se me chegar alguma multa a casa, sei a quem a cobrar!
-
Oh, doutor! – tive de me rir
-
Até amanhã!
Só
isso, virou-me as costas com um mísero «até amanhã».
Aquele
homem estava-me a dar cabo da cabeça.
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